A PROVIDÊNCIA DE DEUS E A ORAÇÃO DE SEUS SERVOS
Jesus nos ensinou a orar: “… Faça-se a tua vontade, assim na terra como
no céu” (Mt 6.10). A oração não é uma tentativa de mudar a vontade de
Deus, mas sim a manifestação sincera do nosso desejo de submeter-Lhe os
nossos projetos, aspirações, sonhos e necessidades. A oração sincera se
caracterizará pelo intenso desejo de submeter nossos desejos à vontade
de Deus. Esta submissão não é algo simplesmente aprendido pela razão,
embora mesmo racionalmente temos argumentos para assim proceder, pelo
fato de sabermos que Deus é sábio, bondoso e onisciente. “Somente o
Espírito pode capacitar-nos a subordinar todos os nossos desejos à
glória divina”.[1] A submissão a Deus é um aprendizado da fé, através de
nossa comunhão com Ele.
Quando pedimos que Deus faça a Sua vontade, o fazemos não
resignadamente, como se não tivesse jeito mesmo, ou como se Deus fosse o
nosso inimigo que nos venceu e que agora só resta nos submeter
humilhantemente… Não! A nossa oração é feita com amor e confiança,
certos de que a vontade de Deus é sempre a melhor, de que ela sempre é
boa, agradável e perfeita (Rm 12.2); por isso, temos prazer em
cumpri-la, conforme bem expressaram Davi e Paulo, respectivamente:
“Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro em meu coração está a
tua lei” (Sl 40.8). “Não servindo à vista, como para agradar a homens,
mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus” (Ef
6.6). Somente um coração que tem dentro de si a Palavra, pode sentir
prazer na vontade de Deus e, se alegrar na manifestação do Seu poder.
Ao orarmos sinceramente, conforme nos ensinam as Escrituras, estamos
submetendo a nossa vontade a Deus; isto significa que não pretendemos
ensinar a Deus, nem mudar a Sua vontade; antes, nos colocamos diante
dEle dizendo: Eu creio que a Tua vontade é a melhor para a minha vida,
cumpre em mim todo o Teu propósito. Orar é entregar confiantemente o
nosso futuro a Deus a fim de que Ele concretize Sua eterna e santa
vontade em nós. A oração revela o nosso desejo de que a vontade de Deus
se realize.[2]
João Calvino (1509-1564), comentando esta petição, diz:
“Com esta prece somos induzidos à negação de nós mesmos, para que Deus nos reja conforme o Seu arbítrio. Nem somente isto, mas também que, a nada reduzidos a mente e o coração nossos, crie Deus em nós mente nova e novo coração, para que em nós não sintamos qualquer frêmito de desejo que a pura anuência para com a Sua vontade. Em suma, que não queiramos nós próprios algo de nós mesmos; pelo contrário, que Seu Espírito nos governe o coração, para que, ensinando-nos Ele interiormente, aprendamos a amar as cousas que lhe aprazem, a, porém, odiar as que Lhe desagradam. De onde também isto se segue: que todos e quantos sentimos à vontade se Lhe opõem, a esses renda-os e vãos e írritos.”[3]
A Oração do Senhor nos ensina a pedir a Deus que realize a Sua vontade
aqui na terra como é feita no céu. Oramos para que a vida na terra se
aproxime o máximo possível a do céu, onde os anjos cumprem perfeitamente
a vontade de Deus (Sl 103.21).[4]
A vinda do reino (Mt 6.10) é o resultado lógico do cumprimento da
vontade de Deus. Quando assim oramos, estamos seguros de que Deus age
sempre em a) Sabedoria; por isso confiamos nos Seus propósitos; b)
Poder; sabemos que Ele é poderoso para cumprir perfeita e totalmente os
Seus propósitos; c) Fidelidade; Deus é fiel a Si mesmo e por isso, Se
revela fiel a nós através de Suas promessas; d) Amor; a Sua vontade é
sempre amorosa; o amor de Deus é aquele que se sacrifica pelo Seu povo.
Finalizando a análise deste princípio, devemos mencionar um outro: A
submissão. A submissão deve reger as nossas orações. Esta atitude vemos
plenamente exemplificada em Cristo, em Sua oração proferida próxima ao
Seu martírio: “Meu Pai: Se possível, passa de mim este cálice! Todavia,
não seja como eu quero, e, sim, como tu queres” (Mt 26.39). O ministério
terreno de Cristo foi uma manifestação constante da Sua obediência
desde a Sua encarnação, passando por todos os desafios inerentes à Sua
missão, até a Sua auto-entrega na cruz em favor do Seu povo (Vd. Fp
2.5-8; Hb 5.8).
A oração está relacionada com a Providência de Deus. Se por um lado, nós
não podemos delimitar a ação de Deus às nossas orações, por outro,
devemos estar atentos ao fato de que Deus nos abriu a porta da oração a
fim de exercitarmos a nossa fé em paciente submissão. Entendemos que as
nossas orações quando feitas por um motivo justo, através de Cristo e,
partindo de um coração sincero, fazem parte da execução do plano de
Deus. “Quando Deus nos dá aquilo que pedimos, é como se essas coisas
tivessem nelas a estampa de nossas orações!”[5]
Portanto, não devemos nem podemos pedir qualquer coisa a Deus contrária à
vontade de Jesus Cristo, visto que as nossas orações são feitas em Seu
nome. “Solicitar algo a Deus, em nome de Cristo, quer dizer
solicitar-lhe algo em harmonia com a natureza de Cristo! Pedir algo em
nome de Cristo, a Deus Pai, é como se o próprio Cristo estivesse
formulando a petição. Só podemos pedir a Deus aquilo que Cristo pediria.
Pedir em nome de Cristo, pois, significa deixar de lado nossa vontade
própria, aceitando a vontade do Senhor!”[6]
Quando oramos, estamos exercitando o privilégio que Deus nos concedeu,
amparados na Sua Palavra que nos mostra as Suas promessas.[7] A nossa
oração é dirigida ao Pai, sabendo que Ele é um Pai onisciente e
providente: por isso, não pretendemos e, de fato não podemos mudar a
vontade de Deus. E, francamente, ainda que pudéssemos, ousaríamos
fazê-lo? Será que faríamos algo melhor? Se você por um instante sequer
titubear diante desta, permita-me, ridícula questão, é porque você ainda
não conhece o Deus da Palavra!
Nesta mesma linha de raciocínio, escreveu Packer:
“O reconhecimento do fato da soberania de Deus é a base de [nossas] orações. Na oração, o cristão solicita coisas e agradece por elas. Por quê? Porque reconhece que Deus é a origem de todo bem que já possui e de todo bem que espera no futuro. Essa é a filosofia fundamental da oração cristã. A oração não é uma tentativa para forçar a mão de Deus, mas um humilde reconhecimento de incapacidade e dependência. Quando nos pomos de joelhos, sabemos que não somos nós que controlamos o mundo; não estando em nosso poder, portanto, atender nossas necessidades pelos nossos próprios esforços independentes; todas as coisas boas que desejamos para nós mesmos e para os outros devem ser procuradas em Deus; e se elas vierem, virão como dádivas de Suas mãos. (…) Por conseguinte, o que na realidade fazemos, cada vez que oramos, é confessar nossa própria impotência e a soberania de Deus. Dessa maneira, o próprio fato de um crente orar é uma prova positiva de que crê na soberania do seu Deus.”[8]
Curiosamente, Platão (427-347 a.C.), um filósofo pagão, com
discernimento correto, entendia que um dos males de sua época era a
corrosão da religião praticada por supostos sacerdotes e profetas - que
ele chama de mendigos e adivinhos -, os quais exploravam a credulidade
das pessoas, especialmente das ricas. Dentro do quadro descrito, uma das
fórmulas usadas por esses líderes religiosos, era fazer as pessoas
crerem que poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de
sacrifícios ou, através de determinados encantamentos; os deuses seriam
portanto limitados e aéticos, sem padrão de moral, sendo guiados pelas
seduções humanas:
“Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores - dizem eles - graças a tais ou quais inovações e feitiçarias. Para todas estas pretensões, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (…). Outros, para mostrar como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o testemunho de Homero, pois também ele disse: ‘Flexíveis até os deuses o são. Com as suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu caminho e errou’ (Ilíada IX.497-501).”[9]
Meus irmãos, este quadro pode parecer estranho, mas na realidade, muitas
pessoas ainda crêem assim ou, pelo menos se comportam como se Deus
fosse movido de um lado para o outro conforme as nossas “seduções
espirituais”: longas orações, peregrinações, sacrifícios, abstinências,
louvores exaltados, entre outros recursos. Este não é o Deus das
Escrituras. O nosso Deus dirige todas as coisas com sabedoria, justiça e
amor; é a Ele a Quem oramos: “seja feita a Tua Vontade!”
A oração é um testemunho solene de nossa confiança no cuidado paternal
de Deus. A Palavra nos estimula a lançar sobre Deus e a Sua promessa
toda a nossa confiança. Jesus Cristo nos instrui: “Buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas cousas vos
serão acrescentadas. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã,
pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”
(Mt 6.33-34). “Não se vendem dois pardais por um asse? e nenhum deles
cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E quanto a vós outros,
até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não temais pois! Bem mais
valeis vós do que muitos pardais” (Mt 10.29-31).
O nosso Pai conhece os nossos corações; Ele sabe as nossas motivações e
intenções. As pessoas podem nos julgar mal como também nós cometemos
este mesmo equívoco; isto ocorre amiúde ou porque não fomos claros como
gostaríamos, ou porque de fato houve má vontade; ou seja, houve algum
ruído na comunicação. No entanto, o nosso Pai, nos conhece
perfeitamente; Ele vê em secreto os segredos dos nossos corações (Mt
6.6). João testifica a respeito de Jesus Cristo: “E não precisava de que
alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia
o que era a natureza humana” (Jo 2.25).
Quando oramos, nós buscamos o Pai, não o homem (Mt 6.5,6). Este é o
sentido genuíno da oração. Não estamos, através da oração, em busca de
recompensa humanas, tais como: o aplauso, um alto conceito a respeito de
nossa devoção e piedade; não. Apesar desta “recompensa” ser geralmente
mais imediata, nós não a buscamos… Pelo contrário, oramos ao Pai para de
fato, falar com Ele, colocando diante de Seu trono de graça as nossas
necessidades… E neste procedimento, jamais devemos nos esquecer de que
Ele sabe todas as coisas.
Mesmo sem conseguir entender perfeitamente a extensão deste maravilhoso
mistério, não podemos deixar de utilizar a oração, um privilégio que
Deus graciosamente nos concedeu, de podermos falar com Ele e, de
exercitar a nossa fé na Sua soberana providência. (1Sm 1.9-20; Sl 6.9;
Pv 15.29; Mt 26.41; Lc 1.13; 1Ts 5.17; Tg 4.2,3; 1Jo 5.13-15). “É pela
fé que tomamos posse de Sua providência invisível”, conclui Calvino.[10]
Deus sabe das nossas necessidades. O saber de Deus não é apenas
intelectual: Deus sabe e por isso cuida (Mt 6.8). Ele não dorme, antes,
sabe do que necessitamos antes mesmo que tenhamos consciência da nossas
necessidades: A Bíblia também nos ensina que Deus nem sempre nos dá
aquilo que pedimos; entretanto, sempre nos dá aquilo de que necessitamos
de fato e de verdade, mesmo que nem ainda tenha penetrado em nosso
coração a realidade da carência… A nossa demorada consciência de nossas
próprias carências não escapa à Providência de Deus, nem à Sua graciosa
provisão.
A Palavra de Deus declara isto. Os salmistas, inspirados por Deus,
testificam: “Os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus
ouvidos estão abertos ao seu clamor” (Sl 34.15). “Ele não permitirá que
os teus pés vacilem: não dormitará aquele que te guarda. É certo que não
dormita nem dorme o guarda de Israel” (Sl 121.3-4). “Aí habitou a tua
grei: em tua bondade, fizeste provisão para os necessitados” (Sl 68.10).
E Deus mesmo promete: “E será que antes que clamem, eu responderei;
estando eles ainda falando, eu os ouvirei” (Is 65.24).
A ação de Deus na História não é de forma imediatista ou apenas para
resolver problemas isolados. Deus age de forma sábia, conforme o Seu
Santo Conselho, objetivando a Sua Glória na execução do Seu plano. O
Plano de Deus e o Seu governo são eternos e eficazes. Davi e Paulo
declaram esta compreensão, respectivamente: “Os teus olhos me viram a
substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus
dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia
ainda” (Sl 139.16). “Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer
e me chamou pela sua graça…” (Gl 1.15).
O próprio Deus, reivindica o Seu governo quando vocaciona o profeta
Jeremias: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e
antes que saísses da madre, te consagrei e te constituí profeta às
nações” (Jr 1.5).
Deus, o nosso Pai, cuida de cada um de nós como se fôssemos o único que
Ele teria para cuidar; Ele cuida “pessoalmente” de nós.[11] As nossas
orações são o testemunho desta certeza. O Deus que preservou a Elias,
enviando os corvos para lhe levarem alimento (1Rs 17.1-6), é o mesmo que
é o nosso Pai onisciente e providente. Portanto, podemos fazer eco ao
testemunho de fé e vida de Davi e de Paulo: “O Senhor, tenho-o sempre à
minha presença; estando Ele à minha direita não serei abalado” (Sl
16.8). “Não andeis ansiosos de cousa alguma; em tudo, porém, sejam
conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela
súplica, com ações de graça” (Fp 4.6).
O melhor antídoto contra a ansiedade é a oração sincera e confiante,
através da qual expomos a Deus as nossas dúvidas, temores e confiança.
Portanto, orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência,
sabendo que nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai.
Calvino, relacionando as nossas orações ao cuidado providente de Deus, escreve:
“Para incitar os verdadeiros crentes a uma mais profunda solicitude à oração, Ele promete que, o que propusera fazer movido por Seu próprio beneplácito, Ele concederia em resposta a seus pedidos. Tampouco existe alguma inconsistência ente estas duas verdades, a saber: que Deus preserva a Igreja no exercício de sua soberana mercê, e que Ele a preserva em resposta às orações de Seu povo. Pois, visto que suas orações se acham conectadas às promessas graciosas, o efeito daquelas depende inteiramente destas.”[12]
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